10.8.15

O meu avô fazia anos no mesmo dia que eu

Cheguei à capela por volta da 1 da tarde. Era domingo, 10 de agosto. Suspirei e deixei cair os ombros, pensando em como nada havia que pudesse evitar aquele momento, aquela minha presença ali.
Chamar-lhe capela é uma hipérbole. Eram pouco mais de 20m2 com umas quinze cadeiras dispostas em plateia com vista para o caixão e um sofá, dispostos paralelamente. Não me lembro de cristos ou cruzes. Apenas de que o caixão era claramente a estrela do acontecimento e de que estava aberto.

Sabia que a minha avó acabara de entrar com a minha irmã mais velha, pois vira-as à entrada da capela, enquanto chegava de carro. O facto de a minha irmã já ali estar aqueceu-me o peito. A ideia de ter que estar com a minha avó (viva) e o meu avô (morto) na mesma divisão sem qualquer rede de segurança (mãe, irmãs…) fazia-me sentir como se tivessem colocado o meu estômago a secar num programa de centrifugação máxima. Nunca sei o que dizer em qualquer momento que apresente profundidade emocional superior a zero.

Quando entrei, cumprimentei a minha avó que, apesar de segundos antes estar com um ar apenas semi choroso, rapidamente me abraçou e transitou para um choro contínuo e um chorrilho de palavras de lamento. Afastei-me alguns segundos depois, respirei o ar leve que parecia circular acima das pessoas sentadas nas cadeiras e pousei a minha mala no sofá. Assimilei rapidamente a realidade de que o sofá era para a família e as cadeiras para os restantes.
Para além da minha avó e da minha irmã, a sala estava já preenchida com vários pontos escuros: senhoras velhas de roupa preta e cabelo cinzento, cuja caras me eram remotamente familiares, mas não o suficiente para que as conseguisse ir cumprimentar pro-ativamente.

Lembro-me de olhar para aquela disposição de cadeiras e pessoas e pensar que parecia que estavam todas à espera que subisse o pano e começasse a peça.

O meu avô estava deitado sobre algo que inocentemente identifiquei como um estrado dourado decorado de folhos brancos,  (houve alguém que mais tarde me explicou que se tratava apenas do caixão aberto). A cara estava tapada por um naperonzinho branco rendado, facto que me fez novamente suspirar, desta vez aliviando ligeiramente o nó do meu estômago.
Era estranho vê-lo ali deitado quieto, em pausa permanente. Como quando se está a ver um filme e se carrega no pause para ir buscar algo doce à cozinha, congelando as caras dos atores em palavras cortadas, bocas abertas e pestanejares incompletos. Ainda agora quando penso nele, não consigo materializar a ideia de que ele já não existe, de que ele já não pensa, nem sente. Parece-me que só consigo pensar do meu ponto de vista e imaginar que ele foi para algum lado onde simplesmente não o consigo visitar.
Hoje, um ano depois, cada vez que vou visitar a minha avó, fico à espera de o ver. Acho que esta estranheza nunca vai desaparecer. Fica simplesmente disfarçada sob as coisas mundanas do dia a dia em 99% do tempo.

O meu avô fazia anos no mesmo dia que eu. 26 de julho. Naquele dia, ele costumava dizer com uma alegria desmedida a quem quisesse ouvir que eu nunca me esqueceria dele e que mais tarde, quando ele já cá não estivesse, diria o meu avô fazia anos no mesmo dia que eu.

Só no primeiro jantar de família em casa da minha avó, a seguir ao 10 de agosto, quando as minhas irmãs e mãe, depois de algum embaraço, disseram para me sentar no lugar do meu avô, é que me apercebi que provavelmente de todas nós eu era a mais parecida com ele. Leões, orgulhosos, reservados e sempre convencidos de que a nossa opinião era a que mais contava, falávamos apenas quando tínhamos algo relevante para dizer. 28 anos demorei eu a ver isto.

O meu avô fazia anos no mesmo dia que eu.

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O 1000º post do dc é dedicado ao meu avô António, faria hoje 91 anos e 15 dias.

1 comentário:

N disse...

A mais bonita das homenagens. Onde quer que esteja estará a dizer "que bem que escreve a minha neta". Um beijinho grande *